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O lucro que mata a terra e quem dela vive
Pelo fato de a utilização dos agrotóxicos ter sido feita muito perto da nascente e de um riacho, a água dessa fonte natural ficou esbranquiçada como se estivesse com excesso de cloro e passou a exalar um cheiro forte insuportável.
Por Jacques Távora Alfonsin
Os desastres ambientais provocados pela aplicação de agrotóxicos no meio rural, por mais conhecidos frequentes, e lamentados, continuam aumentando o número das suas vítimas. Nos dias 27 e 28 de novembro passado, na localidade de Lageadinho, município de Cacique Doble (RS), várias famílias vizinhas à uma área de terras onde eles foram utilizados, sofreram os danosos efeitos dos venenos conhecidos como 2,4-D e Paraquat.
Uma queixa de pessoas que socorreram essas famílias foi levada ao deputado Edegar Pretto, testemunhando a ocorrência de diversos incômodos resultantes daquele sinistro. Dores de cabeça, náuseas, vômitos e diarreia; um bebê com apenas quarenta dias de vida, mesmo depois de medicado, prosseguiu doente; um menino de seis anos apresentou lesões na língua semelhantes às provocadas por queimadura. Internações e exames clínicos,, mesmo laboratoriais, foram feitas na região para diagnosticar as/os doentes e tratar de impedir novas sequelas.
Não só as pessoas sofreram com isso. Pelo fato de a utilização dos agrotóxicos ter sido feita muito perto da nascente e de um riacho, a água dessa fonte natural ficou esbranquiçada como se estivesse com excesso de cloro e passou a exalar um cheiro forte insuportável, sendo impossível saber-se até onde um tal efeito se fez sentir.
Em maio deste ano de 2014, a CNBB publicou o documento 101 (“A Igreja e a questão agrária brasileira no início do século XXI”) no qual desastres ambientais como o acontecido em Lageadinho era previsto como conseqüência inevitável de todo um modelo de exploração da terra que utiliza venenos do tipo lá aplicado, comprovadamente incompatível com o respeito devido a ela, ao meio ambiente e a vida das pessoas:
“Mais de 1 bilhão de litros de agrotóxicos são despejados anualmente sobre os solos brasileiros, gerando problemas ambientais de contaminação dos solos e dos corpos de água, com consequências inevitáveis e imprevisíveis para os mananciais superficiais e subterrâneos. Além disso, geram problemas para a saúde, sobretudo para as pessoas que manipulam esses produtos e das famílias que vivem no entorno das grandes fazendas,sobre cujas extensas plantações os aviões despejam esses agrotóxicos. Esse padrão químico-industrial de produção tem evidentes impactos estruturais sobre as interações da natureza, seus micro-organismos, cadeias de biodiversidade, polinizadores naturais, como as abelhas, complexidade dos sistemas ecológicos etc., eliminando-os gradualmente em troca de uma crescente dependência de insumos comprados. O mesmo processo também se dá com a diversidade de policulturas dos alimentos, reduzidas a uma lista pequena, homogênea e biologicamente pobres de espécies de sementes, criadas em laboratórios para se adaptarem à monotonia do padrão industrial” (…) “É cada vez mais evidente a ampliação dos riscos ambientais impostos por esse padrão de crescimento agrícola.” (São Paulo: Paulinas, 2014).
Um estudo anterior, por nós já lembrado nesse mesmo site (“Agroecologia Militante”, de Enio Guterres), mostra como a chamada “agricultura química” – uma forma de uso da terra pouco preocupada com o uso de agrotóxicos – cria um círculo vicioso de dependência do solo para com a sua aplicação. Lembrando herbicidas à base de 2-4 D, justamente o utilizado em Lageadinho, Guterres mostra que, em vez de diminuir essa dependência, esses tipos de intervenções externas agressivas ao meio-ambiente, ampliam um tal efeito funesto, e, consequentemente, elas aumentam também os lucros das empresas internacionais fabricantes desses venenos:
“O uso intensivo de venenos a principal fonte de recursos das multinacionais. É o principal instrumento de exploração dos camponeses e dos agricultores em geral. É o mecanismo mais eficaz de transferência de renda da agricultura para a indústria.” (…) “Os agrovenenos são também os principais responsáveis pela contaminação das águas e do solo e por inúmeros problemas de saúde dos agricultores. São também os responsáveis pela contaminação dos alimentos. O uso intensivo de venenos tem causado vários problemas para as plantas que não são alvo das aplicações. Por exemplo, os pequenos agricultores têm dificuldade de plantar mandioca e uvas onde se usam muitos herbicidas à base de glifosato ou à base de 2-4 D. O uso de venenos na agricultura tem aumentado a cada dia que passa. Os insetos, as plantas e os fungos tornam-se resistentes e exigem doses cada vez mais fortes e venenos cada vez mais perigosos. As sementes transgênicas mantêm a dependência aos venenos, e até aumentam. E não é fácil livrar-se depois que se está acostumado. As facilidades momentâneas cativam.”
Diante de um poder tão desastroso como esse, a primeira coisa que qualquer pessoa se pergunta é o que faz a lei a respeito. Na letra, muita coisa, mas de prático, pouca. O art. 225, parágrafo 1º, inciso V da nossa constituição, por exemplo, prevê o seguinte:
“Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.” Parágrafo 1º: “Para assegurar a efetividade desse direito incumbe ao Poder Público: V – Controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas,métodos e substâncias que comportem riscos para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente.”
Uma leitura crítica desse artigo, parágrafo e inciso, coloca em questão, no caso de Lageadinho, a velha e polêmica tese de que as conveniências do capital sempre superam as da lei, pois, se os riscos à vida e à saúde das pessoas alcançam danos como os verificados ali, como podem tais venenos ser licenciados à venda? Mesmo se tiverem sido licenciados, qual o poder de fiscalização indispensável para neutralizar os efeitos potencialmente danosos que eles têm, como ficou comprovado nesse sinistro?
Por iniciativa do mesmo deputado que recebeu a denúncia desse desastre, deve acontecer, no início da semana que vem, um encontro com representantes do Ministério Público, para tomada das providências necessárias, inclusive judiciais se for o caso, no sentido de, primeiro, repararem-se os prejuízos sofridos pelas vítimas e depois decidir-se sobre as necessárias à prevenção de sinistros como esse.
O que não deve e não pode mais acontecer é a aplicação da lei prosseguir tão ágil quando serve ao capital e tão lenta quando deveria servir as suas vítimas.
Fonte: Brasil de Fato