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19/09/2014 | Movimentos Sociais

A luta pelo reconhecimento da identidade de gênero na sociedade brasileira

Dediane Souza coordena o Centro de Combate à Homofobia da maior cidade do país, São Paulo. Estudante de comunicação social, quando ainda morava em Fortaleza, Estado do Ceará, a transexual passou por constrangimentos, como ser impedida de utilizar o banheiro feminino na universidade. No entanto, a fé nas pessoas permaneceu. "Muitas vezes você se percebe egoísta e, quando você ingressa no movimento social, percebe que tem uma pauta, uma luta coletiva”, defende a ativista. Tem momentos que Dediane se diz imersa em um ambiente competitivo e cruel, e isso a assusta. "Existem vários padrões que estão aí colocados e você se vê presa a essas normas, que são ditadas dentro da lógica capitalista!”

 

Por outro lado, o relacionamento com a família "vai muito bem, obrigado”. "Minha mãe, inclusive, me chama de ‘minha moça’”. Contudo, isso não quer dizer que Dediane não passe mais por conflitos. "O nome com o qual fui registrada me traz constrangimentos e repulsas porque eu não me identifico com o masculino. Não é bom estar todo dia gritando que você não é homem nem é mulher, você é travesti, e quer ser reconhecida como travesti.”

 

Dediane acredita que o progresso da sociedade vem permitindo à população travesti e transexual, historicamente segregada, ocupar mais espaços na sociedade, mantendo sua identidade de gênero. Gestos como o da Prefeitura de São Paulo, para ela, "[servem para abrir portas] para essas pessoas além das que, historicamente, estão abertas”. "A gente tem a Luma Andrade - 1º travesti doutora, professora titular da Unilab [Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Brasileira], em Redenção, Ceará - e outros nomes que romperam com essa lógica que está ai montada”, destaca.

 

Nesta entrevista exclusiva à Adital, Dediane, que comemora a conquista de ser a primeira servidora da Prefeitura de São Paulo a ter o nome social de travesti reconhecido na nomeação para o cargo que ocupa, afirma que apenas o reconhecimento do nome social não basta, é preciso continuar avançando nas conquistas. O objetivo, agora, é a aprovação de uma lei de identidade de gênero. "Eu não quero apenas o reconhecimento do meu nome social, mas responder junto ao Estado brasileiro como Dediane, para que, civilmente, eu possa responder e assinar documentos como Dediane Souza, que é como eu vivo meu cotidiano na sociedade.”

 

Arquivo Pessoal/ Facebook
Dediane Souza

 

 

Adital: Como foi o processo de reconhecimento do nome social por órgãos oficiais, uma vitória do movimento LGBT no Brasil.

Dediane Souza: Essa é uma luta que está na pauta dos movimentos de travestis e LGBT desde 2009. Na época, eu estava no GRAB (Grupo de Resistência Asa Branca, ONG de apoio à comunidade LGBT em Fortaleza), quando se começou a discutir a questão do respeito ao nome social. O movimento percebeu que o não respeito ao nome social era um dos grandes entraves ao acesso das pessoas travestis e transexuais ao serviço público, tanto no âmbito da escola como da saúde. Foram publicadas várias portarias, leis, decretos, em vários estados do Brasil. No Ceará, por exemplo, existe um decreto do Conselho Estadual de Educação em que as pessoas travestis e transexuais têm direito ao uso do nome social em todos os documentos internos das escolas no sistema de educação do Estado. Vários estados, acho que mais de 21, têm algum tipo de resolução sobre o tratamento com o nome social. Mesmo o Sistema Único de Saúde (SUS), através do Comitê Técnico de Saúde da População LGBT, lança mão do uso do nome social. O cartão do usuário do SUS vem com o nome social das pessoas travestis e transexuais. O município de São Paulo possui o decreto 51.180, de janeiro de 2010, que garante às pessoas travestis e transexuais o direito ao nome social nos registros municipais. Quando eu fui convidada para vir para São Paulo coordenar o Centro de Combate à Homofobia, a Prefeitura viu a importância de fazer minha nomeação com meu nome social, respeitando minha identidade, mas isso já era uma política do município. A gente tem um programa aqui chamado Programa Operação Trabalho Pró-Cidadania, em que as funcionárias, estagiárias travestis e transexuais possuem o reconhecimento ao nome social no crachá, e-mail... No meu caso, foi um pouco diferente. Eu assumi um cargo de confiança, então o município de São Paulo, através da Secretaria de Direitos Humanos, sentiu a necessidade de publicar no Diário Oficial do Município meu nome social, complementando que Dediane Souza é meu nome social, responde pelo nome com o qual fui registrada quando nasci.

 

Adital: Esse processo de reconhecimento formal de seu nome social foi pioneiro no Brasil?

Eu não sei te dizer com certeza se esse processo foi pioneiro no Brasil todo, mas, no município de São Paulo, sim, não havia ainda sido publicado em Diário Oficial um nome social reconhecendo a identidade de gênero. Eu nem gosto dessa fala ‘foi a primeira travesti a ser reconhecida em Diário Oficial’ porque têm outras travestis e transexuais que também atuam dentro da Prefeitura que têm reconhecidas suas identidades de gênero, que também possui seu nome no crachá, a quem também é dirigida com o nome ao qual deseja ser chamada e que reconhece sua identidade de gênero. Acho que o debate importante é o reconhecimento da Prefeitura [de São Paulo] à identidade de gênero das pessoas travestis e transexuais, abrindo portas para essas pessoas além das que, historicamente, estão abertas.

 

Crachá funcional de Dediane Souza

 

 

Adital: Que tipos de constrangimentos o não reconhecimento da identidade de gênero pode causar às pessoas travestis e transexuais?

A gente usa nossas estratégias de sobrevivência para conseguirmos conviver nos espaços. O maior constrangimento que eu passei foi dentro do ambiente da universidade. Eu sou estudante de Comunicação Social, tranquei esse semestre a faculdade para vir para São Paulo, e não havia nenhuma travesti ou transexual lá. Eu fui chamada na coordenação da faculdade e constrangida a não usar o banheiro feminino, deixando claro que eu não era Dediane. Todo início de semestre, eu conversava com os professores para ser chamada de Dediane... Também em aeroportos tive muitos constrangimentos no momento do embarque. No meu RG, minha foto não é com cabelinho solto, muitas vezes eu ia [embarcar] arrumada para as atividades e aí as pessoas viam minha foto no RG sem maquiagem, além do nome que minha mãe me deu lá estampado, e ao se depararem comigo, viam que é uma pessoa totalmente diferente. A luta que nós travestis e transexuais encaramos, hoje, no Brasil, não é somente pelo reconhecimento do nome social, mas pela aprovação da lei de identidade de gênero e também por um Judiciário mais sensível, que possa, minimamente, respeitar a identidade das pessoas, garantindo o processo de alteração do prenome das pessoas travestis e transexuais. Eu não quero apenas o reconhecimento do meu nome social, mas responder junto ao Estado brasileiro como Dediane Souza, e o Judiciário e o Legislativo brasileiros têm que começar a discutir isso, para que, civilmente, eu possa responder e assinar os documentos como Dediane Souza, que é como eu vivo meu cotidiano na sociedade. O nome com o qual eu fui registrada me traz constrangimentos e repulsas, porque eu não me identifico com o masculino.

 

Adital: Como se dá o processo de alteração do prenome?

A gente entra com um pedido de retificação do prenome justificando o pedido com o argumento que esse nome nos traz constrangimento e não condiz com nossa identidade construída, existem várias jurisprudências positivas. Algumas meninas entram com processo judicial, além de retificação do nome, de mudança de gênero. O meu processo de retificação do prenome está no Fórum Clóvis Beviláqua (em Fortaleza), na quarta Vara de Família, aguardando para ser julgado.

 

Adital: Nos fale um pouco da tua vida, como eram teus sonhos, como foi na escola...

Antes de ingressar no movimento LGBT eu já estava nos movimentos de juventude, comecei a militar muito cedo nos movimentos sociais, e eu me afirmei travesti dentro desses espaços. Eu venho de uma família humilde, do interior do Ceará. No Ensino Médio, eu ainda não havia me afirmado como travesti, foi depois, quando eu já havia deixado a escola. Existe a questão da autonomia. Eu só consegui me afirmar travesti quando eu já estava independente, isso foi fundamental em minha autoafirmação. Meus pais se separaram quando eu tinha sete, oito anos, somos seis [irmãos]. Com minha irmã mais velha eu quase não tive contato, ela casou muito cedo. Minha mãe teve que deixar nossa cidade e ir morar em Fortaleza, eu ainda criança, depois de um tempo, tivemos que voltar. Mas o interessante é que a convivência com a minha sexualidade dentro da família sempre foi muito tranquila, minha mãe nunca percebeu minha sexualidade como ‘algo errado’. Ela sempre pediu muita calma antes de eu me afirmar travesti e, quando senti que havia chegado o momento, foi muito tranquilo – isso dentro do âmbito familiar. Minha mãe, inclusive, me chama de ‘minha moça’. Eu saí de casa aos 16 anos para seguir minha vida. Tenho contato com todos os meus familiares, um bom relacionamento com meus irmãos, minha irmã, minha mãe... mas sempre colocando que eu não poderia estar sempre próxima. Que eu ia estar presente, mas de uma outra forma. A trajetória de vida que eu escolhi seguir [a militância] me pede isso [que eu não esteja lá com eles], então, a gente se coloca numa posição de aceitação e desapego desse núcleo familiar e acaba construindo várias famílias onde chega. Isso é interessante, ressignificar essas novas famílias que você vai criando. Esse contato com o núcleo da família sempre permanece, porque é ali que você se encontra. Sempre quando bate a saudade, bate o aperto [no coração] é para onde vou, corro atrás de colo.

 

gaybrasil.com.br
Reconhecimento do nome social.

 

 

 

Adital: Você acredita que sua boa situação profissional, hoje, pode ter relação com a convivência saudável com a sexualidade?

Eu não sei bem explicar, entende, porque eu não consigo imaginar minha vida sem minha autoafirmação. Eu acho que [tornar-se travesti] é quando você passa a viver o que você é na vida real. Quando você está camuflada, tem medo de muitas coisas, não consegue perceber a vida. Quer dizer, eu vivo intensamente a minha vida por conta dessa total liberdade. Claro que eu não estou livre de preconceitos. Dentro dessa sociedade que a gente convive cotidianamente existem vários padrões que estão aí colocados e você se vê presa a essas normas, que são ditadas dentro da lógica capitalista! Eu tento observar a minha vida para perceber onde eu estou errando, onde eu estou acertando. É importante saber que você perde várias coisas por conta disso [ser travesti], não é algo tão fácil. Você rompe com as normas que estão aí, impostas pela sociedade. Não é bom estar todo dia gritando que você nem é homem nem é mulher, você é travesti e quer ser reconhecida como travesti.

Adital: Antes de você assumir o cargo na Prefeitura de São Paulo, você atuou vários anos no movimento LGBT de Fortaleza. Quais foram os principais desafios desse período?

Eu acho que a maior luta que eu tive enquanto diretora do GRAB, grupo ao qual eu dediquei quase uma década da minha vida, é a ideia do compromisso com o outro. Esse compromisso com o outro é algo fundamental, muitas vezes você se percebe egoísta e, quando você ingressa no movimento social, percebe que tem uma pauta, uma luta coletiva. Quando, nessas últimas cinco Paradas pela Diversidade LGBT no Estado do Ceará [Fortaleza], a gente se organizou e gritou pela criminalização da homofobia foi para que seja reconhecida essa violência que milhares de pessoas LGBT sofrem cotidianamente, seja ela no campo institucional, seja no campo privado... A luta é para que tudo aquilo que a gente reivindica não deixe de ser nada mais do que a gente tem direito. E tudo isso sem esquecer a solidariedade diária com o próximo, porque essa luta não é individual, é muito coletivizada. Isso tem o nome de ‘movimento’.

 

Adital: Fale sobre seu trabalho no Centro de Combate à Homofobia.

Quem coordena a política LGBT aqui no município de São Paulo é o Alessandro Melchior, da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania. O Centro [de Combate à Homofobia] oferece assessoria jurídica e psicossocial para as pessoas vítimas de discriminação, e como São Paulo é um mundo dentro de uma cidade a gente observa várias especificidades de indivíduos, situações. O objetivo é deixar o Centro a cara da população LGBT, que a gente tenha o espaço como um equipamento para o exercício pleno de nossa cidadania.

 

Adital: Aqui no Brasil, há pouco tempo, população LGBT voltou ao centro das atenções, depois que uma candidata à Presidência retirou do seu plano de governo uma proposta progressista no campo dos direitos humanos. Você acredita que essa discussão melhorou a visibilidade da população LGBT ou contribuiu para reforçar o preconceito histórico?

Se você for ver, há 10 anos, essa terminologia homofobia era pouco conhecida. O grande debate político que a gente viu, trazer essa discussão para o maior momento do exercício da cidadania, é, sem dúvida, de suma importância para o movimento. Essa é uma pauta polêmica, as pessoas têm medo de discutir a questão. O fundamentalismo religioso, não a religião, eu acho que é o que mais nega direitos à população LBGT, às mulheres... mas não só, as casas legislativas também não são representativas da população LGBT. E trazer esse debate do respeito à população LGBT para a eleição presidencial foi importante porque esse debate passou por todas as casas, todas as famílias. Quando uma candidata retrocede em seu plano de governo é uma prova do quão difícil é garantir os direitos dessa população.

 

Adital: Como está sendo a repercussão de tua conquista, de ter o nome social reconhecido oficialmente. Quais as expectativas daqui pra frente?

Eu acho que o desafio é conscientizar a população LGBT de que a gente pode ocupar outros espaços além daqueles ditos ‘colocados’. O enfrentamento é esse, a sociedade do dia a dia. Mostrar que a gente não é aquilo que as pessoas pensam, desmistificar aquilo que está posto. Adentrar na sociedade com seu trabalho, sua honestidade. É isso que eu quero, que as pessoas me vejam como algo que é possível, que as travestis podem ocupar esses espaços. A gente tem a Luma Andrade [1º travesti doutora, professora titular da Unilab, em Redenção, Ceará] e outros nomes que romperam com essa lógica que está aí montada.

 

 

Adital: Quais os próximos desafios para o movimento LGBT no Brasil?

Criminalizar a homofobia. Acho que dentro da revisão do Código Penal tem que ser inserida a violência por orientação sexual e identidade de gênero. Outro ponto central é garantir as identidades trans para além do que está colocado hoje. Mas, para tudo isso, temos que conseguir essa reforma política que está sendo convocada. Para se conseguir uma democracia, é necessário garantir os direitos das populações LGBT, indígena, negra desse país. Não há como construir uma sociedade saudável se a gente não garantir o respeito pela diversidade das pessoas, pela igualdade racial, pelos direitos da mulher, entre tantos outros.

Centro de Combate à Homofobia (CCH)

Pátio do Colégio, 5, centro. Tel.: (11) 3106-8780(11) 3106-8780

cch@prefeitura.sp.gov.br

 

Fonte: Adital