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Guerra de classes urbana: As cidades são construídas para os ricos?
As lutas de classe de hoje estão ocorrendo cada vez mais nas cidades,
diz o teórico social e marxista David Harvey. Em uma entrevista para a
"Spiegel Online" ele discute como a urbanização exercerá um papel
chave nos conflitos sociais que virão.
Christoph Twickel
Spiegel Online: Por que um marxista deveria se preocupar atualmente com as grandes cidades em vez da classe trabalhadora?
Harvey: Os marxistas tradicionais reconhecidamente veem a vanguarda da revolução
na classe trabalhadora industrial. Mas como isso está desaparecendo no rastro
da desindustrialização do Ocidente, as pessoas estão começando a entender que
os conflitos urbanos provavelmente serão decisivos.
Spiegel Online: Ao longo da crise da dívida, os salários caíram e os benefícios sociais foram reduzidos na Grécia.
Enquanto isso, greves gerais não geraram pressão suficiente para reverter as
mudanças. Isso pode ser visto como uma evidência que apoia sua teoria, a de que
o proletariado tradicional não pode mais paralisar um Estado?
Harvey: Sim. A classe trabalhadora de hoje faz parte de uma configuração
mais ampla de classes na qual a luta é centrada na própria cidade. Eu substituo
o conceito tradicional de luta de classes pela luta de todos aqueles que
produzem e reproduzem a vida urbana. Os sindicatos precisam olhar para a
existência urbana cotidiana --uma chave para os conflitos sociais que virão.
Nos Estados Unidos, isso levou a central sindical AFL-CIO a começar a colaborar
com os trabalhadores domésticos e migrantes.
Spiegel Online: Uma das teses básicas de seu livro
"Commonwealth" é que o desenvolvimento urbano resolve o problema do
capital excedente. Ele constrói ruas e desenvolve propriedades por meio de
crédito e, assim, tenta escapar da recessão.
Harvey: Um relatório do Federal Reserve Bank (o banco central americano)
de San Francisco colocou recentemente desta forma, dizendo que, historicamente,
os Estados Unidos sempre superaram recessões construindo casas e as enchendo de
coisas. A urbanização pode resolver crises, mas, mais do que qualquer outra
coisa, é uma forma de sair de crises.
Spiegel Online: Há exemplos atuais dessa estratégia?
Harvey: Onde as economias estão atualmente crescendo mais? Na China e na
Turquia. O que vemos em Istambul? Guindastes por toda parte. E quando a crise
estourou em 2008, a China perdeu 30 milhões de empregos em seis meses devido à
queda das importações americanas de bens de consumo. Mas então o governo chinês
criou 27 milhões de novos empregos. Como? Os chineses fizeram uso de seus
imensos superávits comerciais para montar um programa gigante de desenvolvimento
urbano e infraestrutura.
Spiegel Online: Essa estratégia de curto prazo para combate à crise não
é auxiliada pela existência de um regime autoritário como o da China?
Harvey: Imagine Obama ordenando ao Goldman Sachs que desse dinheiro para
desenvolvedores urbanos. Boa sorte! Mas quando um banco chinês recebe uma ordem
do Comitê Central do Partido Comunista, ele empresta quanto dinheiro for
necessário. O governo chinês forçou os bancos a fornecerem grandes quantidades
de dinheiro para projetos de desenvolvimento.
Spiegel Online: Esse tipo de urbanização é necessariamente uma coisa
ruim?
Harvey: A urbanização é um canal pelo qual o superávit de capital flui
para construção de novas cidades para a classe alta. É um processo poderoso que
define a razão de ser das cidades, assim como quem pode viver lá e quem não
pode. E determina a qualidade de vida nas cidades segundo as estipulações do
capital, não das pessoas.
Spiegel Online: Ao mesmo tempo, em Istambul, a Administração de
Desenvolvimento Habitacional, Toki, construiu vários grandes projetos
habitacionais para os pobres. Isso não contradiz sua tese?
Harvey: Não, porque os moradores do chamado Geçekondus, os projetos
habitacionais informais na periferia da cidade, foram sumariamente
transplantados para áreas em desenvolvimento a 30 quilômetros do centro da
cidade, uma expulsão em massa.
Spiegel Online: A crise das hipotecas subprime (de risco) nos Estados
Unidos surgiu precisamente da tentativa de incorporar as classes mais baixas na
propriedade de imóveis. Produtos financeiros imprudentes foram criados para que
até mesmo os mais pobres pudessem obter empréstimos.
Harvey: Dê crédito! Esse grito de batalha promoveu a agenda neoliberal.
Mas isso não é novo. Durante o McCarthismo após a Segunda Guerra Mundial, a
classe dominante já reconhecia que a propriedade de imóvel exercia um papel
importante na prevenção de distúrbios sociais. Por um lado, os ativistas de
esquerda eram combatidos como antiamericanos. Por outro, a construção era
promovida com reformas financeiras e hipotecárias. Nos anos 40, a proporção de
lares ocupados pelo proprietário nos Estados Unido ainda estava abaixo de 40%.
Nos anos 60, já era de 65%. E durante o último boom imobiliário, era de 70%.
Nas discussões sobre reforma das hipotecas no final dos anos 30, a frase chave
era: "Proprietários de imóveis endividados não entram em greve".
Spiegel Online: Em seu livro "Commonwealth", os filósofos
Michael Hardt e Tony Negri alegam que a cidade é uma fábrica para produção de
bens comuns. O senhor concorda?
Harvey: Muito gira em torno da definição de "bens comuns
urbanos". O fato de as praças centrais serem públicas é significativo em
termos do direito à cidade, como demonstraram os movimentos Ocupe em Nova York
e Londres ao tomarem parques privatizados. Nesse contexto, eu gosto do modelo
histórico da Comuna de Paris: pessoas que moravam na periferia voltaram ao
centro da cidade para retomar a cidade da qual foram excluídas.
Spiegel Online: Os movimentos Ocupe deveriam lutar pelo direito à
cidade? Casa a casa, parque a parque?
Harvey: Não, para isso é preciso poder político. Mas, atualmente, a
esquerda infelizmente se esquiva de projetos de grande escala que exigem
políticas públicas --cedendo voluntariamente poder, no meu entender.
Spiegel Online: O senhor é um teórico social e marxista. No seu livro
mais recente, o senhor se refere à "arte de alugar", isto é, quando o
capital ganha lucros adicionais com as discrepâncias locais. O que o senhor
quer dizer com isso?
Harvey: Colocando de modo simples, um monopolista pode exigir um ágio
por um commodity muito procurado. Atualmente, as cidades estão exigindo ágio
por anunciarem a si mesmas como culturalmente únicas. Depois que o Museu
Guggenheim foi construído em Bilbao em 1997, cidades de todo o mundo seguiram
seu exemplo e começaram a desenvolver projetos referenciais. A meta é poder
dizer: "Esta cidade é única, e esse é o motivo para ser preciso pagar um
preço especial para estar aqui".
Spiegel Online: Mas se toda cidade tivesse um Museu Guggenheim ou uma
filarmônica como a que está sendo construída atualmente em Hamburgo, não
haveria um efeito inflacionário em relação a esses projetos que os levaria ao
fracasso?
Harvey: A bolha já estourou na Espanha, e muitos dos projetos imensos
permanecem apenas semiconcluídos. A propósito, grandes eventos como os Jogos
Olímpicos, a Copa do Mundo de futebol e festivais de música servem ao mesmo
propósito. As cidades buscam assegurar para si mesmas uma posição nobre no
mercado --como um vinho raro de uma safra excepcionalmente boa.
Tradutor: George El Khouri Andolfato